terça-feira, 25 de dezembro de 2007

Ele conversava com o seu pequeno amigo enquanto procuravam uma mesa livre na espaçosa sala de convívio. Por sorte, azar, acaso ou destino, a única que se encontrava livre ficava a um escasso metro do confortável sofá verde onde ela estava sentada com a amiga e um amigo dos três.
Eles sentaram-se, trocaram algumas piadas em inglês sobre o facto de a paixão do seu amigo se encontrar logo ali e de como isso poderia influenciar o jogo de cartas que estavam prestes a começar. Baralharam as cartas, tiraram cada um as suas e começaram o jogo. Era uma tarde de quinta-feira igual a tantas outras, eles estavam ambos livres, e passavam o tempo com o habitual jogo de estratégia que tanto gostavam. Falavam do fim-de-semana que se aproximava, das aulas, da rapariga que o seu amigo gostava. Sempre em inglês, quase em sussurros, tornando quase impossível perceber a sua conversa no meio do barulho de meia tarde da sala de convívio. Era um dia normal.
O amigo delas juntou-se-lhes, observando o jogo deles, esperando o resultado e uma partida com o vencedor. Eles receberam bem o novo elemento presente na mesa, mudando de língua para português e elevando um pouco o tom de voz. O recém-chegado mantinha conversas cruzadas com eles e com as duas raparigas. Ele achou que seria simpático convidá-las a juntarem-se a eles na mesa. Afinal de contas, assim o seu pequeno amigo estaria mais perto daquela por quem estava apaixonado. Na verdade, nem esperava que elas aceitassem o convite. Fê-lo mais para não parecer muito antipático do que para qualquer outra coisa. A sua mente estava ocupada no jogo que decorria, durante o típico impasse dos primeiros turnos. Afinal, que mal faria mais alguma audiência? Não a tinham eles quase todos os dias? Para ele eram mais duas caras no limiar da sua visão.
Para seu espanto elas aceitaram. Ela sentou-se ao seu lado, suficientemente longe para não atrapalhar as destras mãos dele enquanto manipulava as cartas na mesa, mas suficientemente perto para sentir o calor intenso do corpo dele. O tema de conversa fluiu para o ultimo álbum de uma qualquer banda de metal, que “está bastante melhor que o resto, muito mais técnico, mas sem perder a sonoridade característica deles”. Ficou surpreendido ao ouvir a seu lado um “desculpa, mas não concordo, o anterior está bastante mais profundo em termos de letras”. Olhou pela primeira vez para os grandes e expressivos olhos castanhos e para a bela face de pele morena rodeada por um cabelo ondulado de um castanho-escuro brilhante e balbuciou um “desculpa?”.
Falaram durante o resto da tarde, em volta da larga mesa onde as cartas continuavam a prender uma pequena parte da sua atenção, desviada agora para a conversa sobre bandas com a pequena figura proporcionalmente construída e bastante bela.
Chegou a hora de saírem da escola e voltarem para casa. Ele iria mais tarde, pelo que acompanhou o amigo á carrinha que o levaria a casa. Não pensou mais nela nesse dia. Ao chegar a casa já tinha desaparecido da sua memória a pequena ninfa de grandes olhos castanhos cujo nome não sabia.
Faltou o dia seguinte, desculpando-se com uma constipação repentina que estaria curada ao final da tarde, para esconder o estado depressivo em que se encontrava. Não lhe apetecia ver pessoas, muito menos ter aulas.
Não se tornou a lembrar da existência dela até que na segunda-feira de manhã, enquanto fumava o seu primeiro cigarro L&M vermelho do dia, foi surpreendido por uma pequena figura vestida de azul passou por ele desejando-lhe um bom-dia com um sorriso rasgado extremamente encantador e dois beijos na cara. Na verdade, só depois de perguntar ao seu amigo quem ela era é que se voltou a lembrar daquela quinta-feira à tarde.
A semana passou entre as aulas, os simpáticos cumprimentos matinais, algumas pequenas conversas entre ambos, e a aparição da pequena ninfa em quase todos os sítios da escola onde ele se dirigia. Ele não sabia se apenas não reparara nela antes ou se os encontros casuais eram algo mais do que isso. Na verdade, ele pouco se preocupava com tal facto. Não estava habituado a ter atenção de raparigas. Via-se como o puto estranho que toda a gente preferia fingir que não existia. E era assim que estava disposto a continuar. Detestava atrair a atenção, o que contrastava com o seu cabelo pelos ombros, o seu tronco bem definido, as suas pernas fortes, as suas roupas pretas, as suas botas de biqueira de aço e o seu comprido casaco de cabedal. Não era alguém que passasse despercebido, mas era alguém que realmente todos fingiam ignorar, o que para ele era perfeito.
Só na sexta-feira, durante uma aula da tarde a que resolvera faltar por motivos de força maior (havia bebido umas quantas cervejas á hora de almoço, e aturar matemática era a ultima coisa que realmente lhe apetecia), quando o seu amigo chegou junto dele com um sorriso extremamente sarcástico e com uma conversa estranha sobre ele andar a “facturar” é que percebeu que algo diferente se passava. Interrogou-o e ficou a saber que a tal ninfa como ele lhe passara a chamar gostava dele. Alguém do sexo oposto gostar dele era estranho o suficiente, mas quando percebeu realmente o que esse gostar significava é que realmente ficou pasmado. A miúda apaixonara-se por ele. Bonito. Como se ele soubesse o que fazer… Passara-se mais de ano e meio desde que tivera uma namorada. Realmente, o pensamento de ter alguém especial na sua vida era agradável, admitiu. Mas daí a que ele tivesse coragem de lhe dizer algo nesse sentido ia muito. E a possibilidade de ser mero gozo fazia-lhe calafrios.
Passou-se outra semana de bons-dias amigáveis, algumas conversas sem jeito em que nenhum dizia nada de especial, olhares furtivos que se desviavam cada vez que se cruzavam e charros extra para aguentar a pressão antes de ele fazer algo.
Resolveu falar com ela na sexta-feira. Afinal, se corresse mal teria todo o fim-de-semana para arranjar coragem para voltar a cruzar-se com ela. Baldou-se toda a manhã, mandou o seu amigo arranjar o numero de telemóvel dela, comprou haxe. Almoçou na cantina à pressa e desapareceu para fora da escola com o seu amigo, para uns bancos de mármore ali perto. Ao menos ali ninguém veria nada. Teria pelo menos até segunda-feira para se preparar para voltar se algo corresse mal.
Preparou um charro, fumou-o com o amigo e mandou-o desaparecer antes de lhe mandar uma mensagem para ir ter com ele. Durante os cinco minutos que passaram entre o envio da mensagem e vê-la a atravessar o portão sozinha pensou em mil e um motivos para desaparecer dali. Afinal de contas, que diria? Que faria? E se ela não estivesse interessada? E se fosse uma partida de mau gosto?
Procurou nos bolsos do casaco os óculos de sol quando a viu e colocou-os na cara para esconder os olhos vermelhos.
Ela chegou e sentou-se a seu lado com um sorriso nervoso, ao qual ele respondeu com um sorriso forçado. Sentia o estômago ás voltas, a insegurança a tomar conta dele.
- Querias falar comigo?
Aceno afirmativo.
- Diz.
Silencio. Ele ponderava todas as opções. Ambos sentiam a tenção, apesar de ele pensar ser apenas ele a estar nervoso.
- Eu…
As palavras custavam a sair-lhe.
- Eu… gosto de ti…
Novo silencio, quebrado de seguida por ele.
- Não sou o puto mais experiente nestas merdas, portanto vou dizer o que penso e pronto.
Ela sorria, mais calma. Afinal tudo estava bem. Até devia ser engraçado.
- Gosto de ti. Chegar a essa conclusão levou mais do que esperava. Mesmo com os boatos e tudo isso, nada torna esta conversa menos embaraçosa, e o meu jeito com as palavras resume-se a palavras escritas, portanto… ok, nem sei que mais dizer. Sei apenas o que quero fazer.
- E o que queres fazer?
Em vez da resposta que esperava, ela recebeu um beijo suave nos lábios, apenas um leve toque rápido que fez a sua pele morena ficar tão vermelha quanto era possível. Um sorriso enorme rasgou-se nos lábios dela. Abraçou-o de olhos fechados e ouviu a voz dele, agora mais calma no seu ouvido.
- Sabes, eu por acaso nem beijo tão mal como deves estar a pensar agora. Permite-me…
Os seus lábios uniram-se de novo, desta vez num beijo carregado de paixão que se prolongou por minutos que pareceram horas.
Voltaram de mãos dadas para a sala de convívio duas horas depois, todos sorrisos e olhares derretidos. Namoravam.

quinta-feira, 20 de dezembro de 2007

- Não te vejo.
- Nem eu a ti.
- Onde estás?
- Aqui.
- Onde é isso?
- Não sei.
- Estás perdido.
- Não. Apenas não sei onde estou.
- Isso é estar perdido.
- Estás perdido?
- Estou.
- Porquê?
- Estou algures a falar com alguém que não vejo.
- Isso também é estar perdido.
- Quem és?
- Não sei.
- És real?
- Sou.
- Como sabes?
- Estou a falar contigo.
- E se fores uma ilusão?
- Seria uma ilusão bastante real.
- Mesmo assim ilusório.
- Sim.
- E eu?
- Tu?
- Sim, eu. Quem sou?
- Sabes?
- Não. Serei tu?
- Não. Tu deves ser tu.
- E se tu e eu estamos aqui...
- Somos reais.
- Existe outra hipotese?
- Existe, mas não quero pensar nela.
- Porquê?
- É assustadora.
- Fala.
- E se formos ambos ilusões?
- Seriamos ilusões bastante reais. Tu mesmo o disseste.
- Se fossemos ilusões de alguém, como teriamos esta conversa?
- Boa pergunta.
- Não somos então ilusões?
- Não disse isso.
- Explica-te.
- E se formos uma ilusão com consciencia?
- Nesse caso temos uma imaginação bastante fertil.
- Ilusões iludidas...
- Ilusões iludidas...

terça-feira, 11 de dezembro de 2007

Que raio querem que eu diga? No fundo eu sei que é tudo um delirio causado por um disturbio bio-quimico, mas parece-me bem mais profundo que isso. A sensação de despersonalização consome-me ao sentir as barreiras a quebrar, impotente assistente à mudança de personagens de uma cena de teatro barato sem qualidade onde o novo personagem nada terá a ver com o anterior, onde não encontro pontos ou ideias comuns e cuja alucinante dança por detrás das cortinas não consigo acompanhar, incauto espectador participante de um jogo perturbado e demente, perdido sem a força para ordenar o caos que criou por vontade de explorar os limites da mente humana sem nunca os ter alcançado por muita dor e perda e desespero e ansiedade e mudança e monotonia e amor e ódio que tenha sofrido e continue a sofrer.

Apetece-me gritar de dor enquanto o frio dilacera as minhas veias, a corrente imparavel do sangue gélido que leva a cada parte do meu corpo um pedaço da dor arrancada da minha mente, permitindo um escape mais fisico ao desespero do vazio apenas preenchido por sentimentos vagos e incertos onde a unica certeza é o desejo de me libertar de tudo o que sinto, de apagar todas as personagens excepto uma, qualquer uma que queira ficar para trás e lidar com o que restou depois da corrupção do ser que há 20 anos nasceu.

São tudo drogas para dormir. Tudo formas de escapar para longe da unica coisa que realmente me faz acordar de noite com suores frios, que me arrepia os pêlos da nuca ao ouvir o seu nome, eu mesmo.
Tudo por ter medo de que parte daquilo que sou se deve a halucinações, a delirios sem qualquer sentido real causados apenas por um desequilibrio bio-quimico, pelos abusos ou por tudo o que não se resume a instruções gravadas num código até hoje ainda maioritariamente indecifrado, neste puzzle desfeito que fui eu.
Fodei-vos com a vossa escrita saudavelzinha e redundantezinha sob regras especificas de forma e construção mas é que não me apetece aturar-vos neste momento quando as barreiras da sanidade se tornam cada vez mais ténues e ameaço a qualquer momento mudar para algo que não posso garantir ser muito melhor do que o pouco que sou agora ou se sequer vai melhorar e não apenas piorar e este pensamento sombrio consome-me por dentro corroendo com a culpa as minhas veias dilaceradas por punhais esquecidos nas sombras numa vã tentativa de esquecer os demonios que tal sacrificio ou demente acto de masoquismo inspiraram nos momentos mais sombrios da dor de ser eu perdido entre todas as mascaras que adopto para esconder a criança pequena que apenas te quer ver feliz e com um sorriso nos lábios porque tu és a coisa mais maravilhosa que alguma vez cruzou o meu caminho e disso nunca duvidei e sei que nunca por mais que procure alguém poderia ocupar o lugar que tu ocupas para mim porque contigo eu podia anular-me e perder-me no mais puro e perfeito acto de contemplação como no mais torrido momento de prazer que nossos corpos possam alguma vez imaginar poder voltar a sentir e seria feliz assim contigo e poderia suportar tudo o que a vida me atirasse pelo caminho se tu estivesses ao meu lado e começo a entrar em redundancia ciclica num momento estranho em que me perdi na essencia de ti novamente e repito a redundancia ciclica porque só tu existes no meu pensamento a cada momento e em cada parte de mim por trás de todas as mascaras onde a pouca distinção sã do real e irreal ainda se manifesta como em todas as máscaras que de irreais nada têm possuindo tudo para ser pessoas felizes num qualquer livro de romance não fosse o seu demente criador as ter condenado do inicio à depressão e à morte reflectindo nelas o seu estado e corrompendo-lhes a essencia até tudo não passar de um nada incerto de duvidas reflectidas.

Foda-se, não sei o que dizer, não sei o que escrevi, not like I fucking care anyways... or do I?

sábado, 3 de novembro de 2007

Olho para os milhares de pedaços de uma mente quebrada vezes sem conta, peças soltas do puzzle que um dia foi um ser humano, ao qual só restam sonhos destroçados, agonia e uma folha de papel, perdido na embriaguês da culpa e do desespero.
Nada resta do antigo poeta sonhador, nada de belo ou bom existe ainda cá dentro. Destilado o fel que brota da minha alma, exorciso demonios num papel, em inutil tentativa de colar os pedaços de algo que outrora foi bom, perdido ao criar ilusões que deformam a minha percepção de mim e do mundo.
Não sei o que sou, não sei o que quero, não consigo distinguir as memorias reais dos trances dementes em que algo que não sou eu toma conta de mim e violentamente me possui, acto no qual me deixo levar pelo masoquismo e tentativa de fuga aos pedaços deste coração demasiado magoado para voltar a sentir algo novo, incansavel na sua sede de amor, a mais impura forma de gostar, e renegando aqueles que estão dispostos a arriscar a vida na esperança de que um dia um farrapo de consciencia daquilo que outrora fui possa vir a ser alguém, mesmo quando não há em mim certezas do que sou, quando não resta um pouco de talento nas minhas veias dissecadas por sucessivas mutilações a que me sujeito em momentos em que a dor se torna demasiado insuportável e tenho que exteriorizar tudo o que me atormenta, apesar da frágil aparencia de que tudo está bem.
Sei! Sei que não sou nada e há muito que perdi a esperança de voltar a ser algo...
E sentes sobre ti bafejadas mil e uma novas sensações trazidas por elementos novos ao som de coisa nenhuma, perdido na escuridão do final da tarde de dezembro em que nada se passa e na chuva que cai lá fora, convidando á melancolia e á meditação, coisas a que tentas abster-te enquanto o gato te leva para longe o maço de cigarros e atrofia com a caneta com que escreves deitado no chão.
E porque raio tens tu algo marcado para um sábado?
Onze e dez da noite. Sexta-feira. Dentro de cinquenta minutos ela faria os seus dezoito anos. A maioridade. Sonho de uma vida de adolescente. Claro que isso merecia uma festa. Uma grande festa. A noite estava por sua conta, e das suas amigas. Ela sorria ao pensar. Ao virar da esquina, uns passos mais à frente, elas esperavam-na dentro do clube nocturno escolhido para a grande celebração. Atrasada... “Que se lixe, sou eu a aniversariante.Posso chegar um pouco mais tarde, não preciso chegar na hora de abrir.”
As ruas desertas, a calma apenas perturbada pelo ocasional carro que passa a esta hora... Nesta zona da cidade, á noite, as ruas percorriam-se a pé, de clube para clube, de bar para bar. Estava tudo calmo ainda. A maioria chegaria depois da meia noite, após umas voltas por tascas e bares, antes do extase da noite, do sitio onde acabariam a divertir-se.
Ela parou num pequeno pátio junto á estrada. Sentou-se no degrau da porta de entrada do centenário edificio, e procurou nos bolsos um cigarro. Com toda a calma, acendeu-o, e ficou a olhar o fumo levado pelo gélido vento de dezembro.
Na rua passava um grupo de jovens, da sua idade, ou pouco mais velhos. Distraidos na conversa animada, não reparam na jovem figura vestida de preto sentada a fumar.
Filipa observou-os, curiosa, observando alguns dos jovens do grupo. Dois deles são giros. “Boa noite para um flirt... talvez algum deles seja interessante.”
O grupo desapareceu da sua vista. Ela ouviu ainda os risos deles durante mais um pouco. Esforçou-se por perceber a conversa, mas era tarde demais, eles estavam longe.
Uma rajada de vento fê-la aconchegar-se melhor no seu longo casaco de cabedal. A saia curta, apesar de sensual, pouco ou nada protegia do frio que se sentia, e o top preto de alças também não era exactamente quente.
Ela atirou fora o cigarro, e percorreu lentamente os duzentos metros que a separam das amigas. À porta do clube, o porteiro sorriu-lhe e desejou-lhe uma boa noite. Ela parou um pouco antes de entrar.
“Qual é o som de hoje?”
“Industrial. É a tua primeira vez cá?”
“Sim. Espero divertir-me.”
“Acredita, vais gostar. Entra, e diverte-te. Isto hoje já está animado, o pessoal chegou mais cedo.”
“Viu uma rapariga loira, com dreadlocks? E uma morena que deve estar vestida de vinil?”
“Sim, entraram há pouco.”
“Boa noite, então.”
Ela inspirou profundamente antes de transpor a porta. Lá dentro, o ruido das conversas, ainda audivel, e a musica baixa provocaram-lhe um sentimento de relaxamento.
Filipa dirigiu-se à zona de mesas, onde as suas duas amigas a esperavam, fazendo planos, e observando os rapazes.
“Isto hoje promete. A Jo falou por aí com o pessoal, acho que isto hoje vai encher.” A voz da rapariga loira, amiga de Filipa.
“E falei com o Pulse, ele vai estar cá com os amigos todos. São sete, alguns deles bem giros.” Desta vez era a morena que anunciava com um sorriso malicioso as novidades. E, virando a cabeça para Filipa, acabada de se sentar junto a elas, exclamou com um sorriso ainda mais preverso. “Bem, Filipita, hoje é o teu grande dia. Ritual de passagem.” Ambas as amigas de Filipa se riram, partilhando um pequeno segredo, que Filipa, não estando habituada á vida noturna não percebeu.
A loira levanta-se e dirige-se ao balcão. “Onde vai a Dariel?”
“Já vais perceber...” O olhar era penetrante, um brilho perceptivel nos olhos da sua amiga.
“Raven...”
“Xiu. Hoje 'tás por nossa conta. Confias em mim ou não?” Novamente nos seus lábios se desenhou o mesmo sorriso perverso.
Entretanto Dariel voltou, seguida pelo barman, um rapaz moreno, nos seus vinte e cinco anos, carregando com agilidade uma bandeja, com três copos altos, cheios de um qualquer liquido vermelho.
“Meninas, hoje a Filipa passa a fazer parte integrante do grupo. Que comece o ritual.” Dariel e Raven riam abertamente, enquanto o barman colocava os copos em frente delas.
Quando ele pegou no terceiro copo, o de Filipa, a Raven interrompeu-o. “Hei, Diablo, não ouviste? Ritual rapaz...”
Ele sorriu, condescendente, e regressou ao balcão, voltando segundos depois com uma garrafa de vodka. “Relaxa.” A voz grave dele deixou Filipa na expectativa. Ele pousou a garrafa na mesa, e inclinou-lhe delicadamente a cabeça para trás. Dariel levantou-se e pegou na garrafa. Como se tudo tivesse sido combinado, a musica sobe de volume, a pista de dança abre. “Benvinda ao Clube!” E com estas palavras Dariel despejou uma boa dose de vodka sobre a cabeça de Filipa.
Na mesa ao lado ouviam-se palmas. Raven e Dariel abraçaram-na. “Vá, vai lá molhar esse cabelo, limpa isso, e vamos divertir-nos.”
Filipa dirigiu-se á casa de banho. Raven e Dariel para a pista de dança.
Ao regressar á mesa, Filipa reparou na mesa do canto. Um rapaz de cabelo preto, espetado, encontrava-se sentado, sozinho, a fumar um cigarro, de pernas cruzadas, encostado á parede. Filipa ficou por momentos a observá-lo, sentada, fingindo fumar também, mas o cigarro limitava-se a arder na sua mão, quase sem ela o tocar com os lábios.
A musica mudou. Ele apagou o cigarro e levantou-se, olhando na direcção dela. Ela continuava sozinha, sentada, o cigarro nos seus dedos, observando os movimentos dele.
Caminhando agilmente entre os varios grupos que entretanto se haviam juntado, ele dirigiu-se á mesa dela, baixou-se, ficando com os lábios junto ao ouvido dela. Tudo demorou apenas uns meros segundos...
“Conflict, de Azoic. Mix de Combichrist. Linda esta musica. Despe o casaco, vem, a pista espera-nos.” A voz dele era suave, melodica. Sem pensar ela seguiu as instruções dele, despindo rapidamente o casaco, e abandonando-o em cima da mesa. O ritmo intensificava-se. As batidas fortes do industrial pulsavam dentro dos corpos que se balançavam ao sabor da musica.
Ele pegou-lhe na mão, e levou-a mesmo para o centro. Soavam as primeiras vozes.
“Keep my perspective straight, keep me away from hate, keep my eyes... uncovered.”
A batida intensa, ela libertou-se, deixou-se fluir, quase em trance. “Ele é giro. Tenho que falar com ele, mas com a musica é quase impossivel.” Os pensamentos fluiam na sua jovem cabeça.
Soltou-se ao som da musica, observando o misterioso rapaz que dançava de olhos fechados á sua frente. “Ainda por cima dança bem...”
De repente, ele abriu os olhos, chamou-a com um gesto para se aproximar, e disse-lhe ao ouvido, em tom sonhador: “Fecha os olhos. Sente o som. Deixa que te guie.”
Ela seguiu o concelho. Durante quatro minutos, de olhos fechados, dançou como se tudo o que importasse no mundo fosse dançar.
Quando a musica acabou, sem uma palavra, sem um gesto, ele saiu da pista de dança, e voltou ao seu lugar, novamente sozinho, na mesa do canto.
“Onde foi ele? Que se passou? Desapareceu... Bem, vou beber o meu copo, e fumar um cigarro.” pensou.
Dirigiu-se á sua mesa, procurando as amigas. “Isto não é assim tão grande, onde estarão?” Olhou em volta, e encontrou com o olhar a Raven, conversando alegremente com um skin-head entroncado. “Bem, a Raven tá entregue...” E sorriu, cumplice da sua amiga. Também ela tinha os seus flirts, mas aqui, ela não sabia com quem se podia divertir, sem causar problemas.
Dariel chegou junto a ela, trazendo nas mãos dois pequenos copos de shot. “Bebe. É doce, mas forte.”
“Que raio é isto?”
“Confias em nós ou não?” disse a amiga, piscando-lhe um olho.
“Acho que não devia, mas vocês sabem divertir-se.” E despejou o copo de um unico trago.
“Bela companhia de dança que tinhas... Andas a fazer amigos é?”
“Nem o nome sei. Convidou-me para dançar, aceitei.”
“Menina, tem cuidado com ele. Mas apanha-o se puderes. Hahaha.” E riram, felizes. Era meia noite e pouco. Até pelo menos ás 4 aquele clube estava aberto. Depois logo se veria.
“Encontramo-nos ás 4 á entrada, ok?”
“Sim Fairy.”
“Fairy?”
“Gostas da tua nova alcunha?”
“É gira. Mas porquê?”
“Porque o pessoal perguntou-me quem era a minha amiga fadinha.” E soltando uma gargalhada, Dariel voltou para a pista.
Fairy ficou sentada, a fumar, observando ainda o seu estranho companheiro de dança. Fairy era sensual, e sabia bem disso. Sabia como mexer com os rapazes. Mas este, no entanto, era diferente. Reparou que apenas tinha olhado bem para o cabelo e para a face.
Começou a olhar para as roupas dele. Umas calças largas, de ganga preta, botas de motard, blusa de licra, justissima, deliniando um tronco bem exercitado. Na cabeça, umas googles com lentes ao estilo de bug shades, prendendo o cabelo na testa. Piercing no lábio, sobrolho, e orelhas. Teria tatuagens?
Ele levantou-se, e caminhou lentamente até ao DJ. Ela reparou que o pescoço dele estava envolto num cachecol, que lhe caia até aos joelhos, lembrando uma cauda ou algo assim, que se movia ao ritmo dos seus passos. “Interessante... acho que já ganhei a noite...”
Ele voltou ao seu lugar, calmamente. Sentou-se, puxou o maço de tabaco de um dos bolsos das calças, e tirou um cigarro e o isqueiro. “Vai fumar. Já sei como meter conversa.” E tirou do bolso do casaco outro cigarro, apagou o que tinha na mão, ainda a meio, e dirigiu-se a ele.
“Tens lume?” Ele estendeu-lhe o isqueiro, e esperou que ela acendesse o cigarro.
“Posso? As minhas amigas estão... ocupadas... se é que me percebes.”
Ele acenou para um dos bancos junto á mesa, um gesto de aceitação, mas não disse uma palavra. Baixou-se, pegou numa mochila que estava no chão e colocou-a em cima da mesa, abrindo-a. Depois falou finalmente.
“Verifica se vem algum dos empregados. Se algum se dirigir para aqui, avisa-me.”
Ela acenou afirmativamente, sem compreender. Ele meteu ambas as mãos dentro da mochila, e manteve-as lá durante uns momentos, fazendo alguns movimentos. Ela não fazia ideia do que estaria ele a fazer. Uns minutos depois tirou-as, trazendo na mão esquerda o isqueiro, e entre os dedos da direita um cigarro artesanal.
“Queres? Vais adorar dançar depois de fumares isto.”
“O que é?”
“White Widow. Erva. Uma das melhores. Consegui uma boa quantidade dela. Acho que por aqui mais ninguém tem.”
“Isso... é... droga?”
Ele sorriu, um sorriso simples, como se se dirigisse a uma criança.
“Um sorriso inocente.” Pensou ela.
“Quantas pessoas morrem por dia por causa do alcool?”
“Várias”
“Pois. Mas por causa disto, nenhuma. Não bebo, muito obrigado.”
Fumaram, um após o outro. Ela sentia-se fantástica, livre... Bela... Mais bela do que alguma vez se sentira. Quando acabaram ele perguntou:
“Como te sentes?”
“Melhor que alguma vez me senti.”
Ele sorriu. “A musica que pedi entra depois desta. Vou fazer-te sentir ainda melhor. Apenas com uma dança. Nada mais.”
Ela acenou afirmativamente com a cabeça.
“Que musica é?”
Um sorriso desafiador enfeitou o rosto atraente dele.
“Beautifull People. Marilyn.”
“Não és de muitas palavras, pois não?” Perguntou ela com um sorriso provocador.
“Falo por musica. Se estiveres atenta...”
A musica que estava a tocar chegou ao fim. A um gesto dele seguem ambos para o centro da pista, e ela repara, no caminho ele a acenar ao DJ, e a receber um gesto aprovativo.
As primeiras batidas sentem-se de novo no ar. As guitarras. Fairy estava em extase. Sentia a musica em cada parte do seu corpo. Nunca lhe tinha sido tão fácil dançar. Sentia-se livre. A uma certa parte da musica ele chamou-lhe a atenção, e apontou para si próprio.
Ela não percebeu, até que as palavras se ouviram na musica, os lábios dele formando a mesma frase. “I am what you see, something beautiful and something free.”
Ela sorriu, encantada. “Ele é giro, tem estilo... Fala pouco, mas também não é para isso que aqui estou.”
Uma pancadinha no ombro fê-la virar-se para trás. Era a Dariel.
“Hey, hoje é a tua vez. A partir de hoje és mulher. Ou pelo menos devias ser.”
E voltou a dançar com um dos rapazes do grupo mais proximo.
Encolhendo os ombros, Fairy continuou a dançar.
A musica mudou mais uma vez. Ficaram juntos no mesmo sitio, sentindo o som. Movendo-se com ele. O som era mais calmo, mais melódico, mas mesmo assim mantendo partes agressivas. Ela não fazia ideia do nome da musica, da banda, e estava pouco preocupada em saber.
O E.B.M. Inundava a sala, fazia cada um seguir o som.
Fairy estava a divertir-se como nunca, ainda de olhos fechados.
Sentiu um toque no cabelo. Abriu por momentos os olhos. Era ele que lhe acariciava a ponta dos longos cabelos negros. Tornou a fechar os olhos, com um sorriso de prazer na face.
Pouco depois pegou na mão dele e abraçou-o. Ficaram assim, juntos, movendo-se como um só. Os seus corpos pareciam conhecer-se, apesar de nunca antes daquela noite se terem visto. Moviam-se ao mesmo ritmo, os mesmos movimentos. Ela sentia-se bem. Feliz ali...
Ouviu as palavras da musica. “Defuse it... Destroy it... Abuse it and enjoy it...”
“This horrible dream, this horrible nightmare...”
“This wonderfull dream, this wonderfull nightmare...”
Beijaram-se. Um pequeno encontro de lábios, de inicio, suave, desafiador... o beijo tornou-se mais intenso, carregado de desejo... de paixão...
Ela nunca se tinha sentido tão bem ao beijar um rapaz. Sim, tinha acontecido muitas vezes, mas parecia ser diferente agora.
Ficaram ali um bom tempo, as mãos de ambos explorando o corpo desconhecido, beijando-se com intensidade...
Ele beijou o seu pescoço... Ela sentiu-se seduzida, linda, desejada...
Uma pequena dor... Ele mordia suavemente a sua jugular. O seu corpo arrepiou-se de prazer. Sentia as mãos dele ao fundo das costas, tocando a sua pele branca. Subindo um pouco por baixo do top dela... ela meteu a mão por baixo da blusa dele. A sua pele era suave, quase como a de um bébé... Olharam-se nos olhos...
“Olá.” O murmurio dela perdeu-se no som do clube. Viu os lábios dele devolverem-lhe a palavra, com o mesmo sorriso inocente que ela tinha visto há... momentos...? horas...?
O tempo pouco importava. Não sabia quanto tempo tinha passado, não lhe interessava. Tornaram a beijar-se, intensamente...
“Vamos embora...” A voz dela era terna, mas exprimia desejo.
Ele acenou afirmativamente.
“Espera por mim á porta, vou avisar as minhas amigas...”
Novo aceno. Era quase impossivel falar ali sem ter que gritar. Ela duvidou que ele fosse capaz de o fazer.
Demorou uns minutos a encontrar as amigas.
“Fairy, onde raio te meteste?” A Raven parecia preocupada, mas ao ver o seu sorriso, retribuiu, mais calma.
“Hey Raven, a nossa fadinha tem estado muito ocupada quase a fazer sexo com aquele giraço ali na pista.” Dariel ria.
“Vou embora.” Fairy estava embaraçada.
“Claro que vais. E levas isto. Não queremos correr riscos.” E com estas palavras Raven enfiou-lhe no decote uma nota, e dois preservativos.
“Diverte-te.” Raven e Dariel riam cumplicemente.
Fairy saiu dali rapidamente, ansiosa por se livrar dos olhares das amigas.
Ele esperava-a lá fora, cachecol ao vento, olhando o infinito com ar sonhador, enquanto fumava mais um dos cigarros artesanais. Um charro... “Um charro... Eu fumei um charro, vou sair daqui com um rapaz cujo nome nem sei... e não faço ideia do que vai acontecer...”
Sorriu olhando para ele, ali, uns metros á frente, totalmente alheio ao mundo á sua volta.
“Claro que faço...”

- Fechei-me em mim. Nunca mais ninguém viu a beleza que eu possuia. Nunca mais a minha caneta escreveu maravilhas capazes de fazer alguém sonhar. Nunca mais um sorriso me saiu sincero. Procurei em meio mundo uma forma de fugir do que sentia de ti. Nada resultou. Apenas o tempo. O amor transformou-se em odio. Não por ti, mas por tudo. O odio em indiferença. A indiferença em apatia. No fim eu já não era nada. E do nada saí, marcado para sempre pelo sofrimento. E nisto me tornei...

- No quê?

O sorriso dele desvanece-se. Vê-se nos seus olhos a mágoa.

- Num poeta maldito.

Ele levanta-se e sai.